domingo, 28 de outubro de 2018

“Corpos outros: das artes de viver ao corpo heterotópico” - Intervenção MAPA 2018 - 02 a 04 Outubro


1 - Apresentação


No ano de 2016 um projeto de intervenção que ocorreria dentro da Faculdade de Educação Física da Associação Cristã de Moços de Sorocaba (FEFISO - ACM) no segundo semestre do referido ano, juntamente com a Mostra Anual de Projetos Acadêmicos (MAPA), foi elaborado pelxs membrxs do Grupo de Pesquisa em Pedagogia da Educação Física (GEPEF).
Ao pensarmos em uma intervenção e em um momento mais apropriado para que esta acontecesse, concluímos por negociá-la nos mesmos dias da amostra anual por alguns motivos: 1- a faculdade estaria recebendo um evento que a mobiliza integralmente; 2- nos dias do MAPA a circulação de pessoas de todos os períodos em horários variados é maior, além de contarmos com visitantes de outras faculdades/universidades ou ex-alunos; 3- trata-se de uma possibilidade de apresentação, desenvolvimento, prática de projetos que, como teve-se por exemplo em 2016, não se dá, necessariamente, através da relação entre palestrantes, ouvintes e conteúdo teórico: mas pode dirigir esse objetivo por outros formatos de linguagem. É o que ainda temos em mente ao apresentar “Corpos Outros”.
A intervenção acontece sem filiação ao GEPEF, o que, em outras palavras, traduz o nosso total desvencilhamento com a agenda oficial de eventos do grupo ou qualquer atividade que possa ser feita em nome dele: independente e inspirado nas discussões mensais, contará apenas com a ajuda dxs membrxs que se interessarem e tiverem disponibilidade para se voluntariar sem qualquer tipo de incentivo de natureza financeira ou de recompensa. O projeto acontecerá única e exclusivamente como uma espécie de laboratório ao qual temos a oportunidade de manifestação, resistência e/ou problematização.
Esse ano a apresentação versará com a temática do corpo, o que torna o nome bastante sugestivo: “Corpos Outros” quer representar o corpo outro; aquele corpo que não faz parte do “nós”; aquele que não é identificado como o “nosso”, mas como o “outro[1]”; aquela sombra que nunca abandonou a identidade, por mais hegemônica que fosse: excluída, posta para fora, rivalizada, atacada, interrompida, a diferença precisa ser representada. Não apenas representada no sentido de “estar junto”, “ser tolerada”, mas no sentido de que não precisa estar junto - é uma maneira dentre todas as possibilidades dos múltiplos (SILVA, 2014)

2 - Problema e justificativa


Dá-se de forma bastante nítida nos dias contemporâneos a representação daquelxs que, antes, tinha-se como “minoria” (aqui, propositadamente, referimo-nos ao termo em aspectos quantitativos) - expressão que se apresenta, na maioria dos contextos, pejorativa. Seja pela televisão ou pelas mídias digitais, os irrepresentáveis começam a tomar o espaço; a profanar as fronteiras sagradas; a reivindicar uma zona comum a todxs, desencadeando efeitos ferrenhos de resistência e de intolerância.
Acompanhamos diariamente casos de violência, racismo e intransigência. Uma leitura mesmo que aligeirada dos jornais diários nos mostram os números alarmantes de violência contra xs LGBT’s; em um círculo social consideravelmente pequeno encontramos diversos relatos de machismo exacerbado, seja entre casais, ou entre desconhecidos; a intolerância religiosa também deixa sua marca em guerras infindáveis que atingem aquelxs com menor representatividade; temos a ciência de que a presença da população considerada negra nas universidades, apesar de seu aumento considerável, ainda é bastante baixa se comparada à população considerada caucasiana; a “outra cultura” é sempre tematizada em momentos festivos, como mística, esotérica, alvo de chacota. Contudo, o que faz de nós, nós? O que faz delxs, elxs?
De certo que os argumentos dispostos sobre a não-violência são importantes, porém, é preciso que pensemos também sobre a questão da visibilidade, da existência, do direito assegurado de poder “tornar-se” infinitamente em algo que extrapole a normatividade regulada pelas relações de poder que, aliás, também sucumbem aos jogos de força intrínsecos do social. Para nós, a exclusão também constitui-se em um problemática digna e necessária de ser abordada.
A saber, levantamos tais questionamentos com o devido cuidado de, ao nos indignarmos frente atitudes discriminatórias, não enveredar para um campo de condutas normativas outras. Ou seja, não se trata de, em detrimento de uma, outra. Mas, de tomarmos uma postura crítica aos discursos vigentes sejam eles excludentes ou - também não desconsideramos essa questão - ditos como inclusivos. Portanto, o que pretendemos com a intervenção é fazer circular modos de viver outros frente aqueles dados como possibilidades únicas, permitidos, consentidos, belos.
“(...) é a pedagogia que veicula grande parte dessas instruções de existência. Há também tudo o que podemos chamar de estereótipos sociais, que, por intermédio da literatura, da escrita ou da imagem, dão modelos de bom comportamento. É preciso dizer ainda que o que chamamos de ciências humanas, em qualquer nível de utilização que as tomemos, do mais baixo ao mais alto, também veicula, de modo mais ou menos explícito, esquemas considerados os bons esquemas da existência, os bons modelos de conduta.”  (FOUCAULT, 2016. pág.27)
O termo “outro”, ou “diferença” nos leva a duvidar que o problema da minoria[2] esteja ligada à inferioridade numérica; somos conduzidxs a cogitar, na verdade, um posicionamento outro dessa minoria em relação à maioria, à identidade: ainda mais quando essa “maioria” é heterossexual; branca; masculina; cristã (SILVA, 2017). Logo, acreditamos que o paradoxo fixado não se resolverá através da exposição de números ou de gráficos, mas através da exposição das relações de poder intrínsecas à determinado meio social. Contudo, nosso objetivo far-se-á menor: transitar, habitar essa fronteira do que não se representa e não se deve representar; do erro; do mau; da perturbação da normalidade.
Nosso problema está alocado justamente nesta ponte que nos difere: a representação do outro, do corpo outro. O Corpo-Outro não faz menção apenas à substância, ao material, mas a existência, àquilo que se rejeita e que “não deve estar ali”. O Corpo-Outro é a cor da pele; é o cabelo; o desejo; a atração; é aquelx que escreveu e não se viu; é aquelx que morreu e não se conhece. O Corpo-Outro não se trata apenas do mecanismo, mas dos fluxos que atravessam: repressivos, libertadores, tristes, alegres.
            Sendo assim, o corpo destituído de uma perspectiva tão somente estética ou se preferirem, substancial, desejamos provocar e pensar no corpo enquanto político, inserido em um conjunto de ditos e escritos acerca dele. Sobre um desejo de verdade do que ele deva ser, aparentar, comunicar.
 Entendemos, portanto, que há um conjunto de saberes que baliza aquilo que podemos chamar de apropriado, seja para o corpo, para a relação com o mesmo ou da relação com o outro. Eis aí, em nosso ponto de vista, aquilo que podemos dizer sobre a categorização do nós, elxs, outros. Uma pedagogia do corpo colocada em circulação cotidianamente seja através da arte, ciência, mídia, religião e/ou escolarização. Uma estrutura de pensamento cuja a representação, entendemos, ser provisória e, portanto, passível de problematização.

3 - Desdobramentos pós intervenção

Algumas questões, problemas fora do textual, nos ajudam a pensar e a propor: seremos invisíveis? Haverá resistência? Como não representar a identidade? Nosso movimento é classificatório? Em que medida podemos falar ou representar o “outro”?
Ao pensarmos em uma possibilidade de corpos outros, estamos pensando especificamente na possibilidade de relacionar o conceito de heterotopia proposto por Foucault (2013). A saber, uma noção de transgredir a subjetividade de um determinado local, lugar, espaço. Não se trata de substituir o espaço, e sim, empregar um olhar diferente sobre o mesmo espaço. Buscar lugares diferentes do aqui e agora.
Com relação ao corpo, o movimento do pensamento é o mesmo. Ou seja, não se trata de substituirmos o corpo identidade, mas, a partir do processo de significação, implodir com a identidade promovendo novas subjetivações e possibilidades de ser. 
É claro que a noção de heterotopia também pode ser pensada enquanto postura. E, neste caso, adotarmos uma postura heterotópica é enxergar - além da(s) identidade(s) produzida(s) arbitrariamente ao longo do tempo - as  mudanças nas possibilidade de ser enquanto corpo. Referimo-nos neste caso aos corpos tatuados, modificados, entre outros.
Propor uma intervenção a partir de imagens de corpos outros é, em última instância, buscar fragmentos dessas subjetivações acerca do corpo. Do dito sobre o corpo. Do aceito enquanto corpo. Tornar visível o que é visível e, a partir dessa visibilidade, pensar o corpo contemporaneamente.  
Buscaremos, após a coleta das impressões sobre a intervenção, analisar os dados registrados pelxs participantes e, em conjunto com o GEPEF, nos debruçarmos sobre essas questões. 

4 - Referências bibliográficas

FOUCAULT, M. Subjetividade e verdade: curso no Collège de France (1980-1981) / Michel Foucault; edição estabelecida por Frédéric Gros sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana; Tradução Rosemery Costhek Abílio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016 - (Coleção obras de Michel Foucault)

FOUCAULT, M. O corpo utópico; As heterotopias / Michel Foucault; Posfácio de Daniel Defert; Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: n1 Edições, 2013

NEIRA, M. G. O currículo cultural da Educação Física: por uma pedagogia das diferenças. In: NEIRA, M. G. NUNES, M. L. F. Educação Física cultural: por uma pedagogia da(s) diferença(s). Curitiba: CRV, 2016. p. 65-104.

SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais / Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. ed - Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeu da Silva. - 3. ed; 9. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 156p.

SOARES, C. Pesquisas sobre o corpo: ciências humanas e educação / Carmen Soares (org.). Campinas, SP: Autores Associados; São Paulo> FAPESP, 2007 - (Coleção educação física e esportes)




[1] “O Outro é o outro gênero, o Outro é a cor diferente, o Outro é a outra sexualidade, o Outro é a outra raça, o Outro é a outra nacionalidade, o Outro é o corpo diferente” (SILVA, 2000 apud NEIRA, 2016, p.71).
[2] Aqui entendida como representatividade, o termo minoria trata especificamente de grupos que, dentro de uma estrutura de saber/poder são posicionados à margem das possibilidades de ser. Interditadas, censuradas ou estigmatizadas, para sermos mais precisos.





















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