1 - Apresentação
No ano de 2016 um projeto de
intervenção que ocorreria dentro da Faculdade de Educação Física da Associação
Cristã de Moços de Sorocaba (FEFISO - ACM) no segundo semestre do referido ano,
juntamente com a Mostra Anual de Projetos Acadêmicos (MAPA), foi elaborado pelxs
membrxs do Grupo de Pesquisa em Pedagogia da Educação Física (GEPEF).
Ao pensarmos em uma intervenção e em
um momento mais apropriado para que esta acontecesse, concluímos por negociá-la
nos mesmos dias da amostra anual por alguns motivos: 1- a faculdade estaria
recebendo um evento que a mobiliza integralmente; 2- nos dias do MAPA a
circulação de pessoas de todos os períodos em horários variados é maior, além de
contarmos com visitantes de outras faculdades/universidades ou ex-alunos; 3-
trata-se de uma possibilidade de apresentação, desenvolvimento, prática de
projetos que, como teve-se por exemplo em 2016, não se dá, necessariamente,
através da relação entre palestrantes, ouvintes e conteúdo teórico: mas pode
dirigir esse objetivo por outros formatos de linguagem. É o que ainda temos em
mente ao apresentar “Corpos Outros”.
A intervenção acontece sem filiação
ao GEPEF, o que, em outras palavras, traduz o nosso total desvencilhamento com
a agenda oficial de eventos do grupo ou qualquer atividade que possa ser feita
em nome dele: independente e inspirado nas discussões mensais, contará apenas
com a ajuda dxs membrxs que se interessarem e tiverem disponibilidade para se
voluntariar sem qualquer tipo de incentivo de natureza financeira ou de
recompensa. O projeto acontecerá única e exclusivamente como uma espécie de
laboratório ao qual temos a oportunidade de manifestação, resistência e/ou
problematização.
Esse ano a apresentação versará com
a temática do corpo, o que torna o nome bastante sugestivo: “Corpos Outros”
quer representar o corpo outro; aquele corpo que não faz parte do “nós”; aquele
que não é identificado como o “nosso”, mas como o “outro[1]”; aquela
sombra que nunca abandonou a identidade, por mais hegemônica que fosse:
excluída, posta para fora, rivalizada, atacada, interrompida, a diferença
precisa ser representada. Não apenas representada no sentido de “estar junto”,
“ser tolerada”, mas no sentido de que não precisa estar junto - é uma maneira
dentre todas as possibilidades dos múltiplos (SILVA, 2014)
2
- Problema e justificativa
Dá-se de forma bastante nítida nos
dias contemporâneos a representação daquelxs que, antes, tinha-se como
“minoria” (aqui, propositadamente, referimo-nos ao termo em aspectos
quantitativos) - expressão que se apresenta, na maioria dos contextos,
pejorativa. Seja pela televisão ou pelas mídias digitais, os irrepresentáveis começam a tomar o
espaço; a profanar as fronteiras sagradas; a reivindicar uma zona comum a
todxs, desencadeando efeitos ferrenhos de resistência e de intolerância.
Acompanhamos diariamente casos de
violência, racismo e intransigência. Uma leitura mesmo que aligeirada dos
jornais diários nos mostram os números alarmantes de violência contra xs
LGBT’s; em um círculo social consideravelmente pequeno encontramos diversos
relatos de machismo exacerbado, seja entre casais, ou entre desconhecidos; a
intolerância religiosa também deixa sua marca em guerras infindáveis que
atingem aquelxs com menor representatividade; temos a ciência de que a presença
da população considerada negra nas universidades, apesar de seu aumento
considerável, ainda é bastante baixa se comparada à população considerada
caucasiana; a “outra cultura” é sempre tematizada em momentos festivos, como
mística, esotérica, alvo de chacota. Contudo, o que faz de nós, nós? O que faz
delxs, elxs?
De certo que os argumentos dispostos
sobre a não-violência são importantes, porém, é preciso que pensemos também
sobre a questão da visibilidade, da existência, do direito assegurado de poder
“tornar-se” infinitamente em algo que extrapole a normatividade regulada pelas
relações de poder que, aliás, também sucumbem aos jogos de força intrínsecos do
social. Para nós, a exclusão também constitui-se em um problemática digna e
necessária de ser abordada.
A saber, levantamos tais
questionamentos com o devido cuidado de, ao nos indignarmos frente atitudes
discriminatórias, não enveredar para um campo de condutas normativas outras. Ou
seja, não se trata de, em detrimento de uma, outra. Mas, de tomarmos uma
postura crítica aos discursos vigentes sejam eles excludentes ou - também não
desconsideramos essa questão - ditos como inclusivos. Portanto, o que
pretendemos com a intervenção é fazer circular modos de viver outros frente
aqueles dados como possibilidades únicas, permitidos, consentidos, belos.
“(...)
é a pedagogia que veicula grande parte dessas instruções de existência. Há
também tudo o que podemos chamar de estereótipos sociais, que, por intermédio
da literatura, da escrita ou da imagem, dão modelos de bom comportamento. É preciso
dizer ainda que o que chamamos de ciências humanas, em qualquer nível de
utilização que as tomemos, do mais baixo ao mais alto, também veicula, de modo
mais ou menos explícito, esquemas considerados os bons esquemas da existência,
os bons modelos de conduta.” (FOUCAULT,
2016. pág.27)
O termo “outro”, ou “diferença” nos
leva a duvidar que o problema da minoria[2] esteja
ligada à inferioridade numérica; somos conduzidxs a cogitar, na verdade, um
posicionamento outro dessa minoria em relação à maioria, à identidade: ainda
mais quando essa “maioria” é heterossexual; branca; masculina; cristã (SILVA,
2017). Logo, acreditamos que o paradoxo fixado não se resolverá através da
exposição de números ou de gráficos, mas através da exposição das relações de
poder intrínsecas à determinado meio social. Contudo, nosso objetivo far-se-á
menor: transitar, habitar essa fronteira do que não se representa e não se deve
representar; do erro; do mau; da perturbação da normalidade.
Nosso problema está alocado
justamente nesta ponte que nos difere: a representação do outro, do corpo
outro. O Corpo-Outro não faz menção apenas à substância, ao material, mas a
existência, àquilo que se rejeita e que “não deve estar ali”. O Corpo-Outro é a
cor da pele; é o cabelo; o desejo; a atração; é aquelx que escreveu e não se
viu; é aquelx que morreu e não se conhece. O Corpo-Outro não se trata apenas do
mecanismo, mas dos fluxos que atravessam: repressivos, libertadores, tristes,
alegres.
Sendo
assim, o corpo destituído de uma perspectiva tão somente estética ou se
preferirem, substancial, desejamos provocar e pensar no corpo enquanto
político, inserido em um conjunto de ditos e escritos acerca dele. Sobre um
desejo de verdade do que ele deva ser, aparentar, comunicar.
Entendemos, portanto, que há um conjunto de
saberes que baliza aquilo que podemos chamar de apropriado, seja para o corpo,
para a relação com o mesmo ou da relação com o outro. Eis aí, em nosso ponto de
vista, aquilo que podemos dizer sobre a categorização do nós, elxs, outros. Uma
pedagogia do corpo colocada em circulação cotidianamente seja através da arte,
ciência, mídia, religião e/ou escolarização. Uma estrutura de pensamento cuja a
representação, entendemos, ser provisória e, portanto, passível de
problematização.
3 - Desdobramentos pós intervenção
Algumas questões, problemas fora do
textual, nos ajudam a pensar e a propor: seremos invisíveis? Haverá
resistência? Como não representar a identidade? Nosso movimento é
classificatório? Em que medida podemos falar ou representar o “outro”?
Ao pensarmos em uma possibilidade de
corpos outros, estamos pensando especificamente na possibilidade de relacionar
o conceito de heterotopia proposto por Foucault (2013). A saber, uma noção de
transgredir a subjetividade de um determinado local, lugar, espaço. Não se
trata de substituir o espaço, e sim, empregar um olhar diferente sobre o mesmo
espaço. Buscar lugares diferentes do aqui e agora.
Com relação ao corpo, o movimento do
pensamento é o mesmo. Ou seja, não se trata de substituirmos o corpo identidade,
mas, a partir do processo de significação, implodir com a identidade promovendo
novas subjetivações e possibilidades de ser.
É claro que a noção de heterotopia
também pode ser pensada enquanto postura. E, neste caso, adotarmos uma postura
heterotópica é enxergar - além da(s) identidade(s) produzida(s) arbitrariamente
ao longo do tempo - as mudanças nas
possibilidade de ser enquanto corpo. Referimo-nos neste caso aos corpos
tatuados, modificados, entre outros.
Propor uma intervenção a partir de
imagens de corpos outros é, em última instância, buscar fragmentos dessas
subjetivações acerca do corpo. Do dito sobre o corpo. Do aceito enquanto corpo.
Tornar visível o que é visível e, a partir dessa visibilidade, pensar o corpo
contemporaneamente.
Buscaremos, após a coleta das
impressões sobre a intervenção, analisar os dados registrados pelxs
participantes e, em conjunto com o GEPEF, nos debruçarmos sobre essas
questões.
4 - Referências bibliográficas
FOUCAULT, M. Subjetividade
e verdade: curso no Collège de France (1980-1981) / Michel Foucault; edição
estabelecida por Frédéric Gros sob direção de François Ewald e Alessandro Fontana;
Tradução Rosemery Costhek Abílio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016 -
(Coleção obras de Michel Foucault)
FOUCAULT, M. O corpo
utópico; As heterotopias / Michel Foucault; Posfácio de Daniel Defert;
Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: n1 Edições, 2013
NEIRA, M. G. O currículo cultural da Educação Física: por
uma pedagogia das diferenças. In: NEIRA, M. G. NUNES, M. L. F. Educação Física cultural: por uma
pedagogia da(s) diferença(s). Curitiba: CRV, 2016. p. 65-104.
SILVA, T. T. Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais / Tomaz Tadeu da Silva
(org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 15. ed - Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
SILVA, T. T. Documentos
de identidade: uma introdução às teorias do currículo / Tomaz Tadeu da
Silva. - 3. ed; 9. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. 156p.
SOARES, C. Pesquisas
sobre o corpo: ciências humanas e educação / Carmen Soares (org.).
Campinas, SP: Autores Associados; São Paulo> FAPESP, 2007 - (Coleção
educação física e esportes)
[1] “O Outro é o outro gênero, o Outro é a cor diferente, o
Outro é a outra sexualidade, o Outro é a outra raça, o Outro é a outra
nacionalidade, o Outro é o corpo diferente” (SILVA, 2000 apud NEIRA, 2016,
p.71).
[2] Aqui entendida como
representatividade, o termo minoria trata especificamente de grupos que, dentro
de uma estrutura de saber/poder são posicionados à margem das possibilidades de
ser. Interditadas, censuradas ou estigmatizadas, para sermos mais precisos.
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